terça-feira, 26 de março de 2013

O quarto de tio Juca

O quarto de tio Juca
era um parque de diversões
sapatos de mulher
vestidos de bailarinas
revistas de homens pelados
dentro de mulheres
que nojo do mijo branco
que saía do piru deles
e ficava nelas

Ninguém entrava no quarto de tio Juca
às vezes achava que nem mesmo ele
tio Juca também não entrava na casa de vovó Iaiá
só na janela fumando e sorrindo
e a família na sala
todos limpinhos de banho tomado
vovó Iaiá quieta
a TV ligada

O parque de tio Juca ficava
separado da casa de vovó Iaiá
quando voltávamos da praia
não podíamos usar o banheiro de azulejo
porque ia sujar de areia da praia
mandavam-nos para o banheiro de tio Juca
lá podia sujar
lá podia criança brincar

E no quarto de tio Juca
a gente brincava
com os sapatos de mulher
com os vestidos de bailarina
e a gente lia
as revistas de homens pelados
dentro de mulheres
e dizia junto
Que nojo do mijo branco
que sai deles
e fica nelas
 
No quarto de tio Juca
naquela vez fui brincar sozinho
mexia nas roupas e falava sozinho
fazia vozes de homens sozinho
fazia vozes de mulheres sozinho
era os homens e as mulheres sozinho
conversando sozinho

Mas no quarto de tio Juca não estava sozinho
papai e mamãe entraram fazendo Buuu sorrindo
papai e mamãe me questionaram sorrindo
papai e mamãe disseram Pode falar sorrindo
papai e mamãe me levaram assustado

Para longe do quarto de tio Juca assustado
a TV ligada assustada
num quarto da casa de vovó Iaiá quieta assustada
a família na sala assustada
todos limpinhos de banho tomado assustados
tio Juca fumando na janela assustado
papai balançou meu braço assustado
mamãe perguntou Você é mulher assustada
papai disse Você é homem assustado
e levei uma pancada gritando

Pensei no quarto de tio Juca gritando
as conversas sozinho gritando
dos homens e das mulheres gritando
eu era os homens e as mulheres gritando
Você é homem gritando
Você quer ser mulher gritando
eu disse Não gemendo

Nunca mais voltei ao quarto de tio Juca gemendo
Não bate no menino gemendo
disse vovó Iaiá gemendo
papai e mamãe gemendo
me deixaram no chão gemendo
até hoje lembro gemendo
do quarto de tio Juca sozinho

domingo, 17 de março de 2013

Papel branco

Eu costumava dizer que eles eram meus vizinhos: os mendigos. A presença deles foi o que primeiro observei quando me mudei, meio de correria, para o apartamento da rua do Russel, em 2009. Na primeira noite, quando levei o cão para o passeio noturno, notei que um homem dormia perto da saída de serviço do meu prédio. Na mesma semana, observei um cara defecando próximo ao plano inclinado que leva ao Outeiro da Glória e algumas pessoas se banhando no espelho d’água que fica atrás do cabeção do Getúlio Vargas. Depois de algum tempo, comecei a reconhecê-los um a um. Estavam sempre por ali. Dois me chamavam a atenção: o travesti-mendigo (eu me perguntava como alguém que teve dinheiro para comprar peitos poderia ter parado na rua) e o Líder Rastafári Da Matilha que, como o apelido que acabei de lhe dar indica, andava com uns bons 5 cães (todos sem coleira, todos sempre próximos a ele, todos muito educados), um carrinho tosco de carregar coisas e usava dreadlocks balançantes, é claro.

Sempre fico estarrecido com mendigos. Talvez porque um dos meus maiores medos seja o de me tornar um. De certa forma, naquela época vivia um terror justificável, afinal tinha ido para a Glória para assumir o apartamento deixado por meu irmão, que decidiu morar em Juiz de Fora, para fugir do buraco de dívidas em que me afundava vivendo em Copa: um aluguel caríssimo, um companheiro desempregado que não tinha como ajudar nas despesas, além de uma tendência a gastar mais do que ganhava. Assumindo o apartamento, quase todo mundo ganharia: eu economizaria R$750,00 e Daniel deixaria de pagar a multa rescisória de contrato, podendo partir para a nova cidade sem preocupações. Só não ganhou meu ex, que não queria sair da Princesinha do Mar.

Até hoje me questiono se foi por isso: a separação foi quase imediata à mudança, que também teve outro preço: tanto meu ex quanto meu irmão não tinham onde deixar suas respectivas mobílias. Resultado: eu, que sempre primei por ter uma casa arrumada, vivia com uma completa zona que me desafiava orgulhosa diariamente. O pior era pensar que o que havia de meu naqueles 70m² era pouquíssimo: uma cama, a máquina de lavar, as estantes de livros, os livros, é claro, os gibis de X-men e o conjunto de xérox e trabalhos que acumulei com todo o carinho nos anos de graduação, especialização e mestrado. Aquela era a bagunça que mais me incomodava. Eram pelo menos três pilhas de pastas e de textos que eu jurava um dia reler, mas que nunca tomava coragem para fazê-lo tamanho o esforço que seria procurar qualquer coisa ali.

Alguma novela usava a praça do Russel como locação e, certa noite, enquanto levava Eugênio, meu cão whippet, para dar umas voltas, parei para assistir a uma gravação. Era uma cena tensa: um carro vinha veloz da Praia do Flamengo e freava em frente ao Hotel Glória, que já estava em reforma. Devia ser a quarta vez que o automóvel repetia o percurso quando comecei a ouvir um barulho estranho ao qual decidi não dar muita atenção inicialmente, mas que demonstrava uma certa insistência. Compreendi, então, que se tratava de um “Psssit” e olhei para trás, para a calçada do Edifício Ypu, aquele de quitinetes que parece um navio: Era o travesti-mendigo que fazia gestos em minha direção, vestido com uma imunda camiseta regata de onde se viam os peitos de silicone balançando, aparecendo sem sutiã. Pensei mais uma vez em como alguém que teve um dia dinheiro para colocar seios postiços pôde ter ido parar na rua enquanto voltava rápido para o meu prédio. Fiquei com medo dele/dela. Pareceu-me um tanto louco/a. Sei lá.

Eram tempos estranhos aqueles. Uma solidão grande batia quase todos os dias. A maioria dos amigos era do casal, então ficou estranho conviver com eles. Evitava-os por não querer tocar no assunto. Já o pessoal do trabalho todo morava para os lados de Jacarepaguá e Barra, então só os encontrava mesmo durante a semana. Como não tinha muito com o que me distrair, ocupava-me com a tentativa de ajeitar o apartamento, apesar das duas mudanças encalhadas que nem meu irmão, nem meu ex se propunham a retirar.

Certo dia, olhei de novo para a pilha de xérox e trabalhos dos meus anos de estudo. Comecei a me perguntar o porquê de guardar tudo aquilo. Afinal, para dar aulas não precisava mais consultar tais materiais e, depois do que considerei sempre um fracasso, a minha pesquisa de mestrado, eu havia desistido há muito de voltar à Academia. Por que não jogar aquela tralha toda fora? O impulso veio e não segurei. Desci ao térreo, peguei um daqueles carrinhos de supermercados que os prédios mantêm para que os moradores coloquem sacolas & afins para subirem mais confortavelmente no elevador.

Textos de linguística, teoria literária, Antônio Cândido, Silviano Santiago, reproduções de obras inteiras (ai, a pobreza), provas, cadernos: tudo comecei a enfiar no carrinho. Decidi transformar o que uma vez foi o registro das minhas leituras e da minha produção intelectual em lixo, em resto. Talvez em algum momento eu tenha pensado em desistir, mas se houve, foi rápido. Lembrei da obra do Hotel Glória e da caçamba de entulho que estava lá. Um bom lugar para largar aquele monte de tralha.

O carrinho andava com dificuldade na calçada de cimento, mas eu não ligava: agora, enfim, o apê ficaria arrumado e eu teria, duvidava, algum sossego. Quando cheguei exatamente naquele lugar onde outro dia tinha fugido do mendigo-travesti e virei para me encaminhar à fachada do Hotel Glória, eis que me deparo com o Líder Rastafári Da Matilha. Estava deitado bem ao lado da caçamba de entulho de obras com aquele monte de cães também deitados em volta.

“Boa noite.”, Cumprimentei.

“Olá, boa noite!”, ele retrucou enquanto eu começava a retirar as cópias do carrinho. “Mas o que é isso, meu amigo?!”

“Isso? Lixo, acho que posso colocar aqui, né?”

“Ora! Não quer mais isso, não?”

“Não. Muito entulho.”

“Então tem problema se eu pegar?”. Pediu ansioso.

Não consegui atinar direito para aquilo. Ele queria os textos?

“O senhor quer os textos?”, perguntei meio atônito.

“Papel branco?! Mas é claro que quero! Vale muito!”, disse realmente muito feliz com a possibilidade de ganhar aquele suposto tesouro.

Não resisti à curiosidade e perguntei. Juro que não cresci o olho para ganhar dinheiro com o que antes supostamente não servia para nada.

“Vale quanto?”

Não vou dizer quanto se paga pelo quilo de papel branco. Não acreditei que ele pudesse ficar tão feliz com tão pouco, senti uma reviravolta no estômago, uma melancolia e disse:

“Ainda tem muito mais lá em casa. Pegue o que quiser, já volto.”

Ele catava, os cães cheiravam curiosos enquanto eu retornava olhando para trás. Fiz mais duas ou três viagens sempre com o carrinho cheio. Em todas as vezes que descarregava o papel, o cara me agradecia umas mil vezes aquela mina de ouro que era o papel branco. Depois disso, passamos a nos cumprimentar. Eu, passeando com meus cão magrelo e elegante, ele com a matilha de vira-latas. Até que ele sumiu da rua do Russel, até que eu sumi da rua do Russel também. Nunca mais o vi.

O mendigo-travesti uma vez apareceu num vídeo do Youtube no qual uns moleques o zombavam e ele pirava xingando todos de “filadaputa”. Foi meio deprimente e cruel vê-los ridicularizando o cara, que pedia respeito. Verifiquei agora enquanto lembrava e o vídeo está lá: “Travecão do Catete”. Uma tristeza.

Atualmente moro em Jacarepaguá e não há muitos nas ruas. Sempre que vou à ZS ou à Tijuca, observo como são tantos! Outro dia descobri uma que mora na rua Retiro dos Artistas, bem perto da minha casa. Ela passa de vez em quando e sorri para mim, silenciosa. Senta embaixo de um arbusto que o dono de alguma daquelas casas lindas cultiva. Dorme, faz suas refeições e deixa sempre no chão um cobertor sujo. Impossível não olhar, não pensar, não temer. O que aconteceu com ela, como foi parar ali?