Eu costumava
dizer que eles eram meus vizinhos: os mendigos. A presença deles foi o que
primeiro observei quando me mudei, meio de correria, para o apartamento da rua
do Russel, em 2009. Na primeira noite, quando levei o cão para o passeio
noturno, notei que um homem dormia perto da saída de serviço do meu prédio. Na
mesma semana, observei um cara defecando próximo ao plano inclinado que leva ao
Outeiro da Glória e algumas pessoas se banhando no espelho d’água que fica
atrás do cabeção do Getúlio Vargas. Depois de algum tempo, comecei a reconhecê-los
um a um. Estavam sempre por ali. Dois me chamavam a atenção: o travesti-mendigo
(eu me perguntava como alguém que teve dinheiro para comprar peitos poderia ter
parado na rua) e o Líder Rastafári Da Matilha que, como o apelido que acabei de
lhe dar indica, andava com uns bons 5 cães (todos sem coleira, todos sempre
próximos a ele, todos muito educados), um carrinho tosco de carregar coisas e
usava
dreadlocks balançantes, é claro.
Sempre fico
estarrecido com mendigos. Talvez porque um dos meus maiores medos seja o de me
tornar um. De certa forma, naquela época vivia um terror justificável, afinal
tinha ido para a Glória para assumir o apartamento deixado por meu irmão, que
decidiu morar em Juiz de Fora, para fugir do buraco de dívidas em que me afundava
vivendo em Copa: um aluguel caríssimo, um companheiro desempregado que não
tinha como ajudar nas despesas, além de uma tendência a gastar mais do que
ganhava. Assumindo o apartamento, quase todo mundo ganharia: eu economizaria
R$750,00 e Daniel deixaria de pagar a multa rescisória de contrato, podendo
partir para a nova cidade sem preocupações. Só não ganhou meu ex, que não
queria sair da Princesinha do Mar.
Até hoje me
questiono se foi por isso: a separação foi quase imediata à mudança, que também
teve outro preço: tanto meu ex quanto meu irmão não tinham onde deixar suas
respectivas mobílias. Resultado: eu, que sempre primei por ter uma casa
arrumada, vivia com uma completa zona que me desafiava orgulhosa diariamente. O
pior era pensar que o que havia de meu naqueles 70m² era pouquíssimo: uma cama,
a máquina de lavar, as estantes de livros, os livros, é claro, os gibis de
X-men e o conjunto de xérox e trabalhos que
acumulei com todo o carinho nos anos de graduação, especialização e mestrado.
Aquela era a bagunça que mais me incomodava. Eram pelo menos três pilhas de
pastas e de textos que eu jurava um dia reler, mas que nunca tomava coragem
para fazê-lo tamanho o esforço que seria procurar qualquer coisa ali.
Alguma novela
usava a praça do Russel como locação e, certa noite, enquanto levava Eugênio,
meu cão
whippet, para dar umas
voltas, parei para assistir a uma gravação. Era uma cena tensa: um carro vinha
veloz da Praia do Flamengo e freava em frente ao Hotel Glória, que já estava em
reforma. Devia ser a quarta vez que o automóvel repetia o percurso quando
comecei a ouvir um barulho estranho ao qual decidi não dar muita atenção inicialmente,
mas que demonstrava uma certa insistência. Compreendi, então, que se tratava de
um “Psssit” e olhei para trás, para a calçada do Edifício Ypu, aquele de
quitinetes que parece um navio: Era o travesti-mendigo que fazia gestos em
minha direção, vestido com uma imunda camiseta regata de onde se viam os peitos
de silicone balançando, aparecendo sem sutiã. Pensei mais uma vez em como
alguém que teve um dia dinheiro para colocar seios postiços pôde ter ido parar
na rua enquanto voltava rápido para o meu prédio. Fiquei com medo dele/dela.
Pareceu-me um tanto louco/a. Sei lá.
Eram tempos
estranhos aqueles. Uma solidão grande batia quase todos os dias. A maioria dos
amigos era do casal, então ficou estranho conviver com eles. Evitava-os por não
querer tocar no assunto. Já o pessoal do trabalho todo morava para os lados de
Jacarepaguá e Barra, então só os encontrava mesmo durante a semana. Como não
tinha muito com o que me distrair, ocupava-me com a tentativa de ajeitar o
apartamento, apesar das duas mudanças encalhadas que nem meu irmão, nem meu ex
se propunham a retirar.
Certo dia,
olhei de novo para a pilha de xérox e trabalhos dos meus anos de estudo.
Comecei a me perguntar o porquê de guardar tudo aquilo. Afinal, para dar aulas
não precisava mais consultar tais materiais e, depois do que considerei sempre
um fracasso, a minha pesquisa de mestrado, eu havia desistido há muito de
voltar à Academia. Por que não jogar aquela tralha toda fora? O impulso veio e
não segurei. Desci ao térreo, peguei um daqueles carrinhos de supermercados que
os prédios mantêm para que os moradores coloquem sacolas & afins
para subirem mais confortavelmente no elevador.
Textos de
linguística, teoria literária, Antônio Cândido, Silviano Santiago, reproduções
de obras inteiras (ai, a pobreza), provas, cadernos: tudo comecei a enfiar no
carrinho. Decidi transformar o que uma vez foi o registro das minhas leituras e
da minha produção intelectual em lixo, em resto. Talvez em algum momento eu
tenha pensado em desistir, mas se houve, foi rápido. Lembrei da obra do Hotel
Glória e da caçamba de entulho que estava lá. Um bom lugar para largar aquele
monte de tralha.
O carrinho
andava com dificuldade na calçada de cimento, mas eu não ligava: agora, enfim,
o apê ficaria arrumado e eu teria, duvidava, algum sossego. Quando cheguei
exatamente naquele lugar onde outro dia tinha fugido do mendigo-travesti e
virei para me encaminhar à fachada do Hotel Glória, eis que me deparo com o Líder
Rastafári Da Matilha. Estava deitado bem ao lado da caçamba de entulho de obras
com aquele monte de cães também deitados em volta.
“Boa noite.”,
Cumprimentei.
“Olá, boa
noite!”, ele retrucou enquanto eu começava a retirar as cópias do carrinho.
“Mas o que é isso, meu amigo?!”
“Isso? Lixo,
acho que posso colocar aqui, né?”
“Ora! Não quer
mais isso, não?”
“Não. Muito
entulho.”
“Então tem
problema se eu pegar?”. Pediu ansioso.
Não consegui
atinar direito para aquilo. Ele queria os textos?
“O senhor quer
os textos?”, perguntei meio atônito.
“Papel
branco?! Mas é claro que quero! Vale muito!”, disse realmente muito feliz
com a possibilidade de ganhar aquele suposto tesouro.
Não resisti à
curiosidade e perguntei. Juro que não cresci o olho para ganhar dinheiro com o
que antes supostamente não servia para nada.
“Vale quanto?”
Não vou dizer
quanto se paga pelo quilo de papel branco. Não acreditei que ele pudesse ficar
tão feliz com tão pouco, senti uma reviravolta no estômago, uma melancolia e
disse:
“Ainda tem
muito mais lá em casa. Pegue o que quiser, já volto.”
Ele catava, os
cães cheiravam curiosos enquanto eu retornava olhando para trás. Fiz mais duas
ou três viagens sempre com o carrinho cheio. Em todas as vezes que descarregava
o papel, o cara me agradecia umas mil vezes aquela mina de ouro que era o papel
branco. Depois disso, passamos a nos cumprimentar. Eu, passeando com meus cão
magrelo e elegante, ele com a matilha de vira-latas. Até que ele sumiu da rua
do Russel, até que eu sumi da rua do Russel também. Nunca mais o vi.
O
mendigo-travesti uma vez apareceu num vídeo do
Youtube no qual uns moleques o zombavam e ele
pirava xingando todos de “filadaputa”. Foi meio deprimente e cruel vê-los
ridicularizando o cara, que pedia respeito. Verifiquei agora enquanto lembrava
e o vídeo está lá: “Travecão do Catete”. Uma tristeza.
Atualmente
moro em Jacarepaguá e não há muitos nas ruas. Sempre que vou à ZS ou à Tijuca,
observo como são tantos! Outro dia descobri uma que mora na rua Retiro dos
Artistas, bem perto da minha casa. Ela passa de vez em quando e sorri para mim,
silenciosa. Senta embaixo de um arbusto que o dono de alguma daquelas casas
lindas cultiva. Dorme, faz suas refeições e deixa sempre no chão um cobertor
sujo. Impossível não olhar, não pensar, não temer. O que aconteceu com ela,
como foi parar ali?