sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Eu olho para os preços de imóveis no Rio de Janeiro e penso que a vida é injusta.

Eu olho para as facilidades dos heteros e penso que a vida é injusta.

Eu vejo as famílias loucas nas quais crianças têm que crescer e penso que a vida é injusta.

Eu vejo cachorros largados na rua e penso que a vida é injusta.

Daí fico puto da vida e um tanto amargurado, mas todo mundo fala que a vida é assim mesmo: "são as olimpíadas e a copa", "quem disse que os heteros não têm dificuldades?", "a família é sagrada" e "Tem muita gente passando fome para pensarmos em cachorros".

Olha, bem cedo eu aprendi que a vida é assim. Desde os primeiros momentos em que tomei consciência da minha existência. E das injustiças que mais me incomodam, listadas acima, penso:

1. seriamente em mudar de cidade;

2. que os heteros que se fodam e bem longe de mim;

3. que as pessoas deveriam ter carteirinha de habilitação para poderem se reproduzir;

4. que um dia eu vou ter um terreno bem grande e distante de pessoas, alguma grana, e um monte de cães catados da rua como companhia.

E dá-lhe The mamas and the papas tocando, e dá-lhe molhar grama e dá-lhe cães ao redor pra eu ter a ilusão de que a realidade tem alguma coisa de boa.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Como havia esse estudo eletivo lotado sobre Caio Fernando Abreu, resolvi reler minha dissertação de Mestrado, pois há muito tempo não entrava em contato com uma perspectiva mais aprofundada sobre ele.

Aqui no blog está registrado. O meu processo de escrita foi muito complicado. Eu vivia com minha família, que sempre foi muito barraqueira. Eu comecei a trabalhar em escola particular, que sempre exigiu demais pagando de menos. Eu comecei a ficar deslumbrado com o desbunde da vida gay, que sempre é mais interessante que sentar e ficar escrevendo. Vivia fugindo da minha orientadora morrendo de vergonha e levei, ao final de todo o processo, uma bronca terrível dela antes e depois de defender.

Saí da pós-graduação disposto a só ler bobagens. Cumpri inteiramente a minha disposição.

Mas eis que releio o primeiro capítulo do trabalho e tenho um choque: não é que estava bom? Sem vaidade, nem modéstia: eu gostei do texto. Nem parecia meu, já que faz tanto tempo.

Daí comecei a pensar em quem sabe retomar a pesquisa num doutorado... Mas me dei conta de que quando estava fodido, separado, sozinho, na Glória, num apartamento horroroso, com a minha mudança somada às de duas outras pessoas, joguei todos os meus papéis de faculdades e afins fora, ou seja, toda a pesquisa sobre Caio que não era em formato de livro foi para o mendigo que andava cheio de cães e que tratou papel branco como pedra preciosa e valiosíssima. Hoje, toda uma vida de estudo deve estar em algum papel higiênico de folha reciclada.

Depois escrevi um email para minha ex orientadora perguntando sobre a possibilidade de ela continuar o trabalho comigo. Não obtive resposta dez dias depois. Isso significa algo.

Por fim, almoço com um quase-ex que vive de pesquisa e achei a vida dele muito triste. Prefiro a minha.

Então não sei se me esforço ou não para tentar doutorado. Eu estou feliz e satisfeito com minha vida profissional, mas às vezes sinto culpa por quem sabe estar um tanto acomodado. Além disso, eu sempre disse que nunca gostaria de sair do Ensino Fundamental. Agora estou no Médio e adorando. Será que o magistério superior e o trabalho acadêmico seriam tão ruins assim?

Ah, sei lá.
Semestre passado ofereci aos alunos um estudo eletivo sobre contos contemporâneos. De 70 até os 2000. As aulas mais divertidas foram quando falamos dos meus autores favoritos (narcisismo?): Caio F., Rubem Fonseca, Sérgio Sant'Anna. Acho que tem a ver com a linguagem literária muito próxima da baixaria.

Vulgaridade estética? Gosto disso. Por que será?

De qualquer forma penso que é literalmente um luxo ter condições de oferecer esse tipo de trabalho no Ensino Médio. Nessas horas eu amo muito o meu emprego.

Neste ano sou somente professor de Literatura na escola. Sempre dei mais aulas de Gramática, algo de que também gosto, mas nunca tive a oportunidade de trabalhar somente com o que me especializei. Sei lá, sinto que de alguma forma os alunos percebem a relação de liberdade ou de libertação que estabeleci com a literatura e sentem algo próximo disso também.

Quando era criança, sempre queria algo pra ler. Havia uma coleção de contos de fadas lá em casa e eu vivia mexendo naquilo. Quando via as crianças na escola com gibis da Mônica, morria de inveja. Uma vez, durante a aula na terceira série eu lia uma história tão divertida que não conseguia parar de rir. A professora Odaléa me tomou o gibi, que era emprestado, e não devolveu. Até hoje sonho em achar esse número (que era bem antigo, dos tempos em que a Mônica era publicada na Abril) pra terminar de ler a história. Nem preciso dizer que meus colegas mais abastados jamais me emprestaram gibis de novo. Tudo por causa do sadismo da vaca da professora.

Até hoje quando vejo algum aluno fazendo algo mais interessante do que a atividade que proponho na aula, cumpro meu papel de chamar atenção, mas tenho plena consciência de que deve haver coisas que, de fato, são mais interessantes que a aula. Até falo isso para eles. Nem sempre o que temos que fazer é o que gostaríamos de fazer. Eu, por exemplo, tenho que pagar uma fortuna de Imposto de Renda. Sem contar nas prestações da minha dívida que terminam em 2015.

Caramba. A turma que entrou este ano na escola vai se formar e eu ainda estarei pagando essa dívida.

O que me faz lembrar do meu ex que andou pedindo para me ligar. Dei o novo número meio curioso (e na esperança de receber algum pagamento do tempo em que o sustentei). Ele disse que viria ao Rio e que queria reencontrar a mim e ao cachorro. Falei que não achava uma boa ideia. Ele respondeu:

_ Cara, você não supera o lance da grana, né? Grana é a coisa mais importante da sua vida? E eu tenho o direito de ver o cachorro. Ele é meu também.

Digo aqui o que disse a ele. Grana é difícil de ganhar (se bem que gosto do meu trabalho, o que torna isso, de certo modo, fácil) e todo mês eu pago muito caro por tudo o que aquele tempo custou. E já que o assunto é esse, vamos, uma vez na vida, tratar cachorro como cachorro? O bicho não tem saudades nem qualquer despesas pagas por outro alguém que não seja eu.

E eu na esperança de receber algum dinheiro que ele tinha o dever ético de me devolver...

Falando em ética, mais uma vez a escola senta para discutir homoafetividade. Nessas horas eu fico muito exasperado com meu emprego. Na boa, o que tem pra discutir? Gays existem e exigem direitos. Por que a gente tem que parar tudo para os heteros superarem suas dificuldades com coisas que não lhes dizem respeito? Eu fico chocado com a cara de pau. Vamos fazer assim: cresça ouvindo de todos que qualquer manifestação gestual ou vocálica sua é errada, enfrente a decepção e o quase desamor de sua família, o bullying na escola, os namorados mal resolvidos e um monte de outras coisas e aí sim sinta-se no direito de fazer o mundo parar para que suas DIFICULDADES sejam resolvidas.

E neste semestre ofereci um estudo eletivo inteiramente dedicado ao Caio F. Lotou. Fiquei chocado. Alguns anos atrás eu só queria poder sentar e conversar com alguém sobre ele. Agora tenho uma sala cheia de alunos interessados em falar sobre.

E falar com aluno é sempre tão bom...