terça-feira, 22 de junho de 2004

Finalmente, o espelho

Foi em mais uma daquelas manhãs rotineiras em que ela acordava às 4h45min para pegar a condução às 5h30min com alguma esperança de ir sentada. Era assim há três anos, desde a viuvez. O marido, autônomo, não deixou pensão e, de uma hora para outra, viu-se inexperiente tendo de procurar emprego para sustentar os dois filhos pequenos e a si mesma. Conseguiu trabalho como inspetora numa escola e todo dia precisava sair cedo, voltar tarde e deixar as crianças na casa da mãe. À noite, dava atenção a seus filhos e, nos fins de semana, arrumava a casa.

Esqueceu-se de si mesma. Os cuidados pessoais se resumiam a tomar banho, escovar os dentes, pentear os cabelos e vestir roupas limpas. Tudo automaticamente, sem prazer ou interesse. Simplesmente deveria ser feito. Não pensava em homens. A dor da falta do marido já não era tão grande, mas nem cogitava de encontrar outra pessoa. Todos a diziam jovem, que deveria seguir em frente, mas era como se o desejo tivesse sido amputado do corpo.

Estava assim, vivendo a rotina: sentada no ônibus e pensando em dívidas, má-criações das crianças, trabalho e mercado quando percebeu um olhar insistente em sua direção. Era de um homem. Bonito. Estranhou. Pensou que devia haver algo de errado consigo mesma. Talvez estivesse com o cabelo desarrumado ou com a roupa rasgada. Tocou-se e tudo parecia normal. Imaginou que na verdade ele não a observava, mas que simplesmente olhava em sua direção.

Fortuitamente passou a prestar-lhe mais atenção. Era jovem, uns trinta anos no máximo, aproximadamente sua idade. Alto, mãos e braços grandes, protetores. Ostentava a barba por fazer e uns olhos castanhos fundos que a olhavam como os olhos de um homem olham uma mulher e se sentiu envergonhada. O rosto deve ter ficado vermelho. Um calor pelo corpo, uma vontade de sair correndo dali e de, ao mesmo tempo, permanecer. Fazia tantos anos que não se sentia assim desejada, que nem se lembrava mais da sensação. O marido veio à cabeça: o calor do corpo, a segurança dos braços... Aí veio a culpa. A culpa que surge sempre com o prazer.

Chegou a hora de descer. Ele continuava mirando-a, analisando-a e ela pensou que não seria capaz de se levantar ou de sequer andar. Conseguiu. Ao deixar o ônibus, quis conferir se tinha sido mesmo verdade e ficou olhando para as janelas, procurando-o. E lá estava ele. Com os olhos do desejo.

Foi caminhando com uma sensação boa. Uma vontade de rir, mas alto, como há muito tempo não fazia. Chegando à escola, correu ao banheiro, pois precisava fazer algo: ver-se. Acendeu a luz e olhou-se no espelho. Ainda era bonita, percebeu. Os cabelos castanhos caindo em cachos, o rosto com traços fortes, mas proporcionais, os grandes olhos negros... Perdeu-se por muito tempo na autocontemplação. Esqueceu-se de tudo: casa, filhos, mãe, contas, mercado, trabalho... Concentrar-se em si mesma era só o que conseguia.

De repente, o sinal tocou. 7h10min. Os meninos começariam a subir. Estava atrasada. Hora de trabalhar, voltar à rotina, à vida. Tinha de controlar a entrada deles. Saiu apressada do banheiro, deixando no espelho somente o reflexo de azulejos brancos e limpos.

Nenhum comentário: