terça-feira, 4 de maio de 2010

Miró

Miró foi negligenciado a vida inteira.

Reza a lenda que ele arrancava com os dentes o piso de seus primeiros donos. Em dois anos, desistiram dele.

Miró sempre ficou em família.

O irmão da primeira dona deixou ele ficar em sua casa. Havia um quintal gigantesco. Ele não incomodaria.

Reza a lenda que ele era o brinquedo favorito de um enorme pitbull hoje morto. As cicatrizes nas enormes orelhas de cocker spaniel parecem comprovar a história.

Só era solto à noite. Quando dia, ficava preso em um canil quente. Bebia água da piscina.

Miró é de linhagem nobre.

É filho de Dalí e irmão de Rodin.

A dona de Dalí, sobrinha do dono da casa com quintal gigantesco, sempre quis tirar Miró de sua dura vida, mas temia pelo equilíbrio do grande mestre surrealista, que era idoso e cheio de manias.

Recentemente Dalí morreu tragicamente. Até hoje não superamos a dolorosa perda. Depois da doença do carrapato e do câncer diagnosticados, ninguém imaginava que ele cairia de um terrceiro andar.

...

A dona de Dalí, 14 anos depois, achou que finalmente era hora de recuperar Miró. Levou-o para casa, depois de uma minusciosa análise veterinária:

Dez anos de otite não tratada.

Dermatite crônica.

Pulgas.

Carrapatos.

Surdez.

Naquele gigantesco quintal onde não incomodava, Miró viveu na solidão. Não aprendeu hábitos de higiene e desenvolveu o terrível hábito de compulsivamente marcar território.

Duas poltronas e um pufe foram jogados fora. Até hoje, se aparece algum cão perto do sofá, o instinto lhe diz para sobrepor o território marcado por Miró.

A dona de Dalí arranjou-lhe um belo sítio, onde ficaria seguro e vivo. Comprometeu-se em arcar com todas as despesas de Miró, bem como com seus muitos tratamentos.

Ele desapareceu do sítio no mesmo dia.

Ninguém viu o cocker spaniel champanhe pelas bandas do Anil.

A dona de Dalí me alugou sua graciosa casa-com-quintal do Pechincha. Chegou a me perguntar, antes de mandá-lo para o sítio, se gostaria de ficar com Miró, mas neguei: três cães já seria loucura. Mas, angustiado com o desaparecimento do cão, prometi ficar com ele, caso encontrado.

Ele foi encontrado no dia seguinte à minha promessa.

Está agora dormindo tranquilamente deitado de barriga para baixo perto dos meus pés. Na verdade, sempre está perto dos meus pés quando estou em casa.

A orelha não coça mais.

A dermatite está melhor.

Não há pulgas ou carrapatos em seu corpo.

Ele aprendeu com os outros dois a perceber quando chego em casa e sempre me faz festa, mesmo surdo.

Tenho certeza de que o melhor momento de seu dia é quando pego a coleira para passearmos: os quatro.

Fica revoltado se fecho a porta de casa, deixando-o com os outros na varanda quando me arrumo para trabalhar.

A compulsão por marcar o território continua. Acho que aprendi a conviver com isso.

Fico pensando sobre Miró e os outros...

Eugênio mudou a minha vida.

Olívia é a criatura por quem mais tenho carinho no mundo.

Miró...

Não sei elaborar sobre Miró.

Só sentir.

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