Miró foi negligenciado a vida inteira.
Reza a lenda que ele arrancava com os dentes o piso de seus primeiros donos. Em dois anos, desistiram dele.
Miró sempre ficou em família.
O irmão da primeira dona deixou ele ficar em sua casa. Havia um quintal gigantesco. Ele não incomodaria.
Reza a lenda que ele era o brinquedo favorito de um enorme pitbull hoje morto. As cicatrizes nas enormes orelhas de cocker spaniel parecem comprovar a história.
Só era solto à noite. Quando dia, ficava preso em um canil quente. Bebia água da piscina.
Miró é de linhagem nobre.
É filho de Dalí e irmão de Rodin.
A dona de Dalí, sobrinha do dono da casa com quintal gigantesco, sempre quis tirar Miró de sua dura vida, mas temia pelo equilíbrio do grande mestre surrealista, que era idoso e cheio de manias.
Recentemente Dalí morreu tragicamente. Até hoje não superamos a dolorosa perda. Depois da doença do carrapato e do câncer diagnosticados, ninguém imaginava que ele cairia de um terrceiro andar.
...
A dona de Dalí, 14 anos depois, achou que finalmente era hora de recuperar Miró. Levou-o para casa, depois de uma minusciosa análise veterinária:
Dez anos de otite não tratada.
Dermatite crônica.
Pulgas.
Carrapatos.
Surdez.
Naquele gigantesco quintal onde não incomodava, Miró viveu na solidão. Não aprendeu hábitos de higiene e desenvolveu o terrível hábito de compulsivamente marcar território.
Duas poltronas e um pufe foram jogados fora. Até hoje, se aparece algum cão perto do sofá, o instinto lhe diz para sobrepor o território marcado por Miró.
A dona de Dalí arranjou-lhe um belo sítio, onde ficaria seguro e vivo. Comprometeu-se em arcar com todas as despesas de Miró, bem como com seus muitos tratamentos.
Ele desapareceu do sítio no mesmo dia.
Ninguém viu o cocker spaniel champanhe pelas bandas do Anil.
A dona de Dalí me alugou sua graciosa casa-com-quintal do Pechincha. Chegou a me perguntar, antes de mandá-lo para o sítio, se gostaria de ficar com Miró, mas neguei: três cães já seria loucura. Mas, angustiado com o desaparecimento do cão, prometi ficar com ele, caso encontrado.
Ele foi encontrado no dia seguinte à minha promessa.
Está agora dormindo tranquilamente deitado de barriga para baixo perto dos meus pés. Na verdade, sempre está perto dos meus pés quando estou em casa.
A orelha não coça mais.
A dermatite está melhor.
Não há pulgas ou carrapatos em seu corpo.
Ele aprendeu com os outros dois a perceber quando chego em casa e sempre me faz festa, mesmo surdo.
Tenho certeza de que o melhor momento de seu dia é quando pego a coleira para passearmos: os quatro.
Fica revoltado se fecho a porta de casa, deixando-o com os outros na varanda quando me arrumo para trabalhar.
A compulsão por marcar o território continua. Acho que aprendi a conviver com isso.
Fico pensando sobre Miró e os outros...
Eugênio mudou a minha vida.
Olívia é a criatura por quem mais tenho carinho no mundo.
Miró...
Não sei elaborar sobre Miró.
Só sentir.
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