domingo, 16 de maio de 2004

Olhos de ressaca

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, quis levá-la; mas o cadáver parece que a tinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. (ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro. Ática: 1994. p. 160-161)


Muito provavelmente a referência a Machado vai ser bem capenga, mas lá vai: essa descrição do olhar de Capitu sempre me impressionou muito. Até porque tal gesto é bem importante para mim... E eu me considero um tanto quanto "controlado" no que se refere a ele e, se me olham de uma maneira inesperada, geralmente não sei como agir.



Foi o que aconteceu ontem. E umas outras duas vezes em menos de um mês, com duas pessoas diferentes também. Geralmente a cena é assim:

Estou em público conversando amenidades, coisinhas bobas e engraçadas. Todos riem, eu rio e dirijo o rosto aleatoriamente para a pessoa que está à minha frente num gesto de cumplicidade divertida. Entretanto, o ato se sustenta por demais e surge uma sensação de constrangimento, pois parece que ou eu ou o destinatário do meu olhar tem algum interesse além do simples compartilhamento de uma piada.

Tal dúvida é extremamente cruel pra mim, que sou um inseguro inveterado: entendi tudo errado ou acabei de receber um descarado "mole"?

Eu tenho um grande medo de dar uma de Bentinho e criar histórias mirabolantes a partir de um olhar (uma opinião pessoal sobre a tal "traição" de Capitu. Quem é que não se rende a essa besteira?). Especialmente se parte de alguém que me atraia. E geralmente fujo, a ressaca jamais me alcança. Seja ela proveniente de alguém interessante ou não.

Eu queria ter mais coragem e sair dessa creepice total, mas sempre me vem à cabeça uma certa letra do Belle & Sebastian:

It's safer not to look around
I can't hide my feelings from you now
There's too much love to go around these days


E o medo sempre vence.

VAI SER INSEGURO ASSIM LÁ NA CASA DO C@$#%&!!!!!

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