quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"Ele é muito estranho, né? Tem um jeitinho."

Quando penso na minha infância, não consigo deixar de sentir uma certa compaixão: morro de pena. Sentimento estranho para se ter por si mesmo, ainda que seja em um estágio distante da própria vida. Mas não dá. Apesar da casa, da comida, da higiene, dos cuidados médicos, não consigo deixar de pensar que era como se eu fosse vítima de um holocausto ou prisioneiro de um campo de concentração. Claro que sou suspeito, afinal dificilmente alguém não se vê como herói da própria história.

O lance é que me chama a atenção essa extrema fragilidade e dependência que as crianças têm. Um prato cheio para os perversos de plantão, especialmente se forem pais. Quem há que os questione? Todos nos chocamos quando vemos déspotas alucinados fazendo atrocidades com suas nações, mas nos esquecemos de que, no microcosmo familiar os pais, em seus poderes quase irrestritos, podem quase tudo desde que não espanquem ou matem.

Eu devia ser muito efeminado. Não tenho nem tinha como me ver de fora para saber. Em minhas memórias, não me recordo de algum dia em que o que eu dissesse fosse ouvido como algo positivo, pelo contrário. Havia sempre uns olhares de repreensão que não entendia muito bem por que existiam. Até que em algum momento começaram a ser verbalizados:

"Fala direito! Fala que nem homem!"

Aquilo soava na minha cabeça já um pouco consciente como uma terrível injustiça: eu não era homem: era um menino, logo não devia ser cobrado por algo que eu não tinha condições de fazer. Além disso, ninguém me dizia como era falar do jeito que eles esperavam, ou seja, eu tinha que dar o meu jeito para atender àquela exigência absurda.

Certas vezes, quando a gente ia à casa de algum amigo do meu pai, eles me preparavam:

"O filho dele tem sua idade, é muito macho. Vê lá como você vai se comportar."

E eu seguia o caminho até a casa de quem quer que fossem aquelas pessoas com um embrulho no estômago, um mal estar que hoje entendo que é nojo.

Comecei a ficar muito calado, silencioso, isolado. Na escola, ou havia o bullying "Ai, ai, bichinha!", ou havia os professores chamando meus responsáveis "Ele é muito estranho, né? Tem um jeitinho." E dá-lhe olhares agressivos durante a conversa, e dá-lhe, quando chegávamos em casa:

"Você tem que falar direito. Como homem. Parar de nos envergonhar."

E eu sentia uma raiva tão grande por ser a vergonha deles. Já via TV, novela, essas coisas. Os pais amavam seus filhos. Faziam loucuras por eles. Os meus sentiam vergonha de mim e me tratavam como uma coisa errada, que não devia ser.

Em algum momento que não sei precisar bem quando, se foi antes de falar, se foi durante a idade escolar, não sei, a minha irmã começou a se esfregar em mim quando mamãe, em sua frustração de-dona-de-casa-que-largou-um-futuro-quem-sabe-brilhante-para-ter-vocês-olha-como-devem-ser-gratos, resolvia fazer algum supletivo à noite, ou cursos de costura-pintura-em-vitral-tapeçaria em Madureira, e decidia que a menina já tinha idade suficiente para-tomar-conta-dos-seus-irmãos.

Eu já tinha alguma consciência de que aquilo era errado e morria de culpa e achava que iria para o inferno.

Então, resumidamente, a minha vida era assim:

"Fala direito! Fala que nem homem!"

"O filho dele tem sua idade, é muito macho. Vê lá como você vai se comportar."

"Ai, ai, bichinha!"

"Ele é muito estranho, né? Tem um jeitinho."

"Você tem que falar direito. Como homem. Parar de nos envergonhar."

Então comecei a prestar atenção aos homens que eu tinha por perto: pai, irmão, tios, vizinhos. Eles berravam por causa de futebol e eu não entendia o porquê daquilo. Nem eles. Eles mijavam na rua e achavam que era certo. Alguns fediam. Quase todos os adultos bebiam e fazia vergonha, escândalo, violências.

Acho que foi aí que comecei a sentir algum orgulho de ser "meio estranho". Eles estavam errados. De alguma forma, eu era melhor.

E eu lia: contos de fadas, Série Vaga lume, X-men, e por aí vai. Muita gente injustiçada lutando pelo seu lugar no mundo.

Quando me questionei sobre o porquê de ter aquela vaga aberta para eu poder funcionar, a analista questionou:

"Será que você não buscava se manter nesse lugar de vítima que te dava tanto prazer?"

"Sim", respondi. Parece que não sabia ou não sei viver diferente.


Um comentário:

Anônimo disse...

Eu adoro esse blog!
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